Brasil[1]
Não me convidaram pra esta festa pobre
Que os homens armaram pra me convencer
Apagar sem ver toda essa droga
Que já vem malhada antes de eu nascer...
Não me ofereceram nem um cigarro
Fiquei na porta estacionando os carros
Não me elegeram chefe de nada
O meu cartão de crédito e uma navalha...
Brasil! Mostra tua cara
Quero ver quem paga pra gente ficar assim
Brasil!
Qual é o teu negócio? O nome do teu sócio?
Confia em mim...
Cazuza
Senador Biônico. Acho que a geração atual não sabe o significado dessa expressão. Senador, sei que todos sabem. Biônico, segundo o Aurélio, tem a ver com “biônica, ou obtido por processo biônico. 2. Bras. Joc. Diz-se de Senador não eleito, mas sim nomeado segundo disposição do Pacote de Abril...” Mas o que é “Pacote de Abril?” [2]
Esta breve introdução é para demonstrar que não é possível comemorar vinte anos da Constituição Federal sem relembrar o processo constituinte de 1987/88.
I - A TRANSIÇÃO PACÍFICA
O regime militar imposto ao povo brasileiro em 1964 perdurou até 1985. Apesar da resistência, inclusive armada, a nossa transição para a democracia foi de forma pacífica. Ao menos no nível institucional.
Na primeira metade dos anos 80, um grande movimento tomou as praças do Brasil: Diretas Já! Conta história que os últimos comícios reuniram mais de 1 milhão de pessoas no Rio de Janeiro e em São Paulo.
Ora, o então deputado Dante de Oliveira, eleito pelo PMDB, percebendo a vontade do país em eleger seu Presidente, coletou assinaturas no Congresso Nacional e apresentou a Proposta de Emenda Constitucional nº 05, em 02 de março de 1983. Depois de intensa mobilização popular, em 25 de abril de 1984, a emenda foi colocada em votação e rejeitada. Foram 298 votos a favor, 65 contra, 3 abstenções e 112 deputados ausentes.
A PEC foi rejeitada, mas era tarde demais para os militares.
O então PDS, partido da sustentação dos militares, estava fragmentado com o iminente fim do regime militar e os civis não chegaram a um acordo sobre o nome para a disputa da eleição indireta no colégio eleitoral. Aureliano Chaves, Marco Maciel, Sarney, Maluf, Mário Andreazza, Antônio Carlos Magalhães, Jorge Bornhausen, dentre outros, lutavam entre si pelo espólio dos militares. Resultado: Sarney e Bornhausen abandonaram o barco, Aureliano Chaves e Marco Maciel abriram mão da disputa e a convenção do PDS escolheu Paulo Maluf na disputa com Mário Andreazza.
Os dissidentes do PDS, juntamente com o PMDB, criaram a Frente Liberal e elegeram, em 15 de janeiro de 1985, no colégio eleitoral, a chapa composta por Tancredo Neves e José Sarney.
Assim, estava realizada a transição.
O resultado todos sabem: Tancredo Neves adoeceu na véspera da posse, foi internado às pressas e José Sarney tomou posse em 15 de outubro de 1985. Tancredo faleceu em 21 de abril do mesmo ano.
A análise da participação popular na transição e das articulações políticas não é objeto desse trabalho, que pretende se limitar à análise puramente institucional.
II - A CONSTITUINTE
Uma das bandeiras de luta da esquerda, reforçada com o movimento pelas diretas, era a convocação da Assembléia Nacional Constituinte. Sarney, o então presidente, não tinha como abandonar o compromisso.
De forma “sui generis”, Sarney convocou a Constituinte através de uma Emenda Constitucional à então vigente Constituição de 1967, emendada em 1969. Assim, a EC nº 26/85 convocou, na verdade, um Congresso Constituinte, cujos membros foram eleitos em 1986 e reuniram-se em 01 de fevereiro de 1987.
E os “senadores biônicos” com isso? Ora, o mandato dos senadores era de 8 (oito) anos e renovado em um terço e dois terços a cada 04 (quatro) anos. Assim, de tão “sui generis” a Constituinte brasileira também foi composta de vinte e três senadores não eleitos pelo povo.
Apesar de convocada dessa forma, o movimento popular, movimento sindical, Igreja e diversos setores da sociedade civil promoveram diversas manifestações em Brasília em defesa dos direitos dos menos favorecidos. A representação dos partidos de esquerda, apesar de minoritária, conseguiu também interferir durante o processo e aprovar diversos dispositivos de seu interesse.
Assim, tivemos um processo constituinte que, de um lado, selou a transição institucional e, de outro lado, inseriu no ordenamento uma Constituição extremamente minuciosa, com dispositivos específicos acerca dos princípios e objetivos da República, além de uma vastidão de direitos individuas e sociais, ou seja, a Constituição garantia a transição da antiga ordem e, ao mesmo tempo, estabelecia metas e programas a serem realizados pela nova ordem.
III - O PODER JUDICIÁRIO
Regulava o Poder Judiciário a Emenda Constitucional nº 01, de 17 de outubro de 1969, com os remendos da Emenda Constitucional nº 07, de 1977. Apesar do princípio da autonomia dos poderes, o Judiciário era atrelado ao Executivo em todos os sentidos.
Somente com a aprovação da Lei Orgânica da Magistratura, Lei Complementar nº 35, de 14 de março de 1979, a magistratura pode respirar e contar com um texto legal que lhe garantia a vitaliciedade, a inamovibilidade e a irredutibilidade dos vencimentos. Além disso, estabelecia as seguintes prerrogativas:
Art. 33 - São prerrogativas do magistrado:
I - ser ouvido como testemunha em dia, hora e local previamente ajustados com a autoridade ou Juiz de instância igual ou inferior;
II - não ser preso senão por ordem escrita do Tribunal ou do órgão especial competente para o julgamento, salvo em flagrante de crime inafiançável, caso em que a autoridade fará imediata comunicação e apresentação do magistrado ao Presidente do Tribunal a que esteja vinculado (vetado);
III - ser recolhido a prisão especial, ou a sala especial de Estado-Maior, por ordem e à disposição do Tribunal ou do órgão especial competente, quando sujeito a prisão antes do julgamento final;
IV - não estar sujeito a notificação ou a intimação para comparecimento, salvo se expedida por autoridade judicial;
V - portar arma de defesa pessoal.
Pois bem, o artigo 93 da CF/88 determinou que “Lei Complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura.”
Pergunta-se: por que, passados 20 (vinte) anos, o Estatuto da Magistratura não foi ainda apresentado ao Congresso para ser votado? Será que não é necessário ou simplesmente falta iniciativa ao STF? E mais: o Poder Judiciário definido na CF/88, ajustado com a Emenda nº 45/2004, e a LOMAN de 1979 são capazes de realizar as demandas da própria Constituição?
Além disso, depois da Constituição de 1988, o normativismo pátrio ofereceu ao povo diversos códigos e estatutos para proteção dos mais variados direitos: ECA, CDC, Estatuto do Idoso, Estatuto das Cidades, Lei Maria da Penha etc.
Para completar, em 2002, o novo Código Civil, na concepção de Miguel Reale, é uma Lei que contempla os princípios da eticidade, sociabilidade e operabilidade, ou seja, demanda um Judiciário operativo e uma magistratura ética e com olhar voltado para o problema social do país para promover o cumprimento do Código.
IV - O GRANDE BAILE
A sensação que se teve após a promulgação da Constituição Cidadã, no dizer do deputado Ulisses Guimarães, é que, finalmente, o Brasil viveria um grande baile social, democrático e igualitário. Um grande forró ou “for all.”
Afinal, todos éramos iguais perante a lei e estava garantidos, constitucionalmente, os direitos individuas e sociais.
Ora, para que esse baile se realize, algumas tarefas precisam ser distribuídas, o local precisa ser decorado, a banda contratada, os participantes convidados, cervejas e refrigerantes gelados, salgadinhos providenciados e tudo o mais que um baile necessita para ser um grande sucesso.
Neste baile, grande momento da realização das conquistas da CF/88, o Judiciário tem a tarefa primordial: oferecer o espaço e decorar o local para a grande festa. É neste local que as pessoas vão bailar, sentar-se em mesas ou simplesmente assistir o desempenho dos dançarinos. Necessita de estrutura para acomodar a todos, mesas, cadeiras e saídas de emergências. Com boa decoração, as pessoas ficariam mais alegres e divertidas. Além do local, ao Judiciário também cabe a organização do baile, um script final: horário, convidados, repertório, banda musical, luzes etc.
Neste baile, a magistratura será representada por ágeis garçons e exímios dançarinos.
O serviço será de primeira classe. A cerveja bem gelada e os salgadinhos crocantes. Para cada mesa um garçom, para cada necessidade um serviço. Todos gentis e bem educados: com licença, pois não, desculpe, obrigado... Os dançarinos precisam dançar de tudo: salsa, merengue, xote, valsa, maxixe e, eventualmente, até mesmo um tango argentino. Ajuda-nos, Gardel!
A dança precisa de doses de carinho, sussurros ao ouvido, leveza, agilidade, calor humano e jamais pisar no pé da dama. Em hipótese alguma. Nossos dançarinos precisam de muita técnica, mas, sobretudo, de humanismo. Deve acolher e respeitar mesmo quem não saiba dançar. Aliás, deve também ensinar a quem não sabe os passos da dança. Com sabedoria e paciência. Sem gabolice. Quem não sabe, aprende.
Neste local, onde todos bailam, não há que falar em “segurança jurídica” de uns ou “neutralidade” de outros. O que se pretende é todos tenham segurança e que o local seja, de fato, o local da realização da Justiça.
V - 20 ANOS DEPOIS
Sem muitas palavras, são 20 (vinte) anos passados e o Poder Judiciário ainda não criou o espaço do baile. O Judiciário é o mesmo de 20 (vinte) anos atrás, ou melhor, é pior do que antes. Não se estruturou para a grande judicialização criada pela Constituição de 1988 e demais normas decorrentes da Constituição.
Sem espaço, não tem baile. Sem Poder Judiciário forte, autônomo e bem estruturado, como pensar no acesso ao judiciário e garantia de direitos constitucionais?
Não se pode confundir a criação do espaço para o baile com decisões isoladas de algum Juiz ou Tribunal, mesmo que seja do STF. O espaço precisa ser bem mais amplo e garantir a presença de todos os que têm sede de justiça.
Piorando o quadro, a magistratura não aceita a função de garçom e, muito menos, de dançarino. Na compreensão atual, um magistrado não pode servir ao povo. Ao contrário, ele precisa ser servido. Um magistrado não precisa tratar os demais com educação e delicadeza, pois é uma autoridade e merecedor do acatamento e obediência. Não. Servir, jamais.
Ora, sem serviço, o baile não atenderá a função proposta pela “Constituição Cidadã.” Se cada um buscar se servir, a cerveja e os salgados serão para os mais fortes e bem posicionados no baile. Não haverá, dessa forma, justa distribuição e será um “salve-se quem puder” ou “quem tiver.”
Por fim, se jamais bailou com o povo, a magistratura brasileira também não aprendeu a dançar e, pior ainda, não se dispôs a aprender. Aliás, bailou em alguns bailes inacessíveis ao povo. Requintados e caros concertos. Em festas populares, jamais. Definitivamente, a magistratura brasileira não se preparou para o grande baile e jamais teve a intenção de fazê-lo.
Sem dúvidas, alguns poucos juízes, formados em humanismo e sensibilidade social, críticos do Direito, sonhadores com a Justiça, utópicos, compreendendo que o Direito não se resume à Lei, se aproximam e ensaiam alguns passos de dança. Desengonçados, pernas duras, sem molejo, mas interessados em aprender novos passos de dança. Pelo menos.
Também não pode esperar tanto de magistrados que aprenderam o Direito nas mesmas faculdades de Direito de séculos atrás, onde estudantes são meros depósitos de normas e dogmas...
VI - AS REVOLUÇÕES
Sem revolução, nosso baile jamais acontecerá.
Primeiro, a Revolução Democrática da Justiça e, segundo, Revolução Humanística do Magistrado.
Sobre a Revolução Democrática da Justiça, retomo breve resumo da obra de Boaventura Sousa Santos que apresentamos à magistratura da Bahia. [3]
“As idéias de Boaventura Sousa Santos sobre o tema estão discutidas no mais recente livro do mestre Português lançado Pela Editora Cortez (SANTOS, Boaventura Sousa. Para uma Revolução Democrática da Justiça. São Paulo: Cortez, 2007), que é uma edição revista e ampliada da palestra proferida em 06 de junho de 2007, em Brasília, a convite do Ministério da Justiça.
Na verdade, os temas relativos à democratização e aceso à justiça já haviam sido abordados anteriormente por Boaventura Sousa Santos em outras obras. Em “Pela mão de Alice”, por exemplo, na terceira parte, com o título “Cidadania, Emancipação e Utopia”, defende o autor que as reformas do processo ou do direito substantivo não terão significado se não forem acompanhadas pela reforma democrática da organização judiciária e a reforma da formação e recrutamento dos magistrados. (SANTOS, Boaventura Sousa. Pela mão de Alice. 11ª ed. São Paulo: Cortez, 2006. p.180. )
Na palestra proferida em Brasília, Boaventura é enfático logo na introdução: “a revolução democrática do direito e da justiça só faz verdadeiramente sentido no âmbito de uma revolução democrática mais ampla que inclua a democratização do Estado e da sociedade.”
Esta revolução passaria pelos seguintes vetores:
a ) profundas reformas processuais;
b) novos mecanismos e novos protagonismos no acesso ao direito e à justiça;
c) nova organização e gestão judiciárias;
d) revolução na formação de magistrados desde as Faculdades de Direito até à formação permanente;
e) novas concepções de independência judicial;
f) uma relação de poder judicial mais transparente com o poder público e a media (imprensa), e mais densa com os movimentos e organizações sociais;
g) uma cultura jurídica democrática e não corporativa.
Ao abordar o tema da formação dos magistrados, Boaventura elenca os “sete pecados” desta cultura normativista e técnico-burocrática da atualidade:
1) prioridade do Direito Civil e Penal;
2) cultura generalista de que o magistrado, por ser magistrado, tem competência para resolver todos os litígios;
3) desresponsabilização sistêmica perante os maus resultados do desempenho do sistema judicial, manifestada através de três sintomas: o problema é sempre dos outros, da outra instância; desempenhos distintos dentro do mesmo Tribunal e baixíssimo nível de ação disciplinar efetiva;
4) o privilégio do poder junto à justiça, traduzido no medo de julgar os poderosos, de investigar e tratar os poderosos como cidadãos comuns;
5) refúgio burocrático: gestão burocrática dos processos, privilegiando a circulação à decisão; preferência por decisões processuais em detrimento de decisões substantivas e aversão a medidas alternativas;
6) distância da sociedade: o magistrado conhece o direito e sua relação com os autos, mas não conhece a relação dos autos com a realidade, tornando-se presa facial da cultura dominante. Pensa que está julgando com isenção, mas está julgando de acordo com os ideais da classe política dirigente;
7) confundir independência com individualismo auto-suficiente, que não permite aprender com outros saberes.
Especificamente em relação às escolas da magistratura, Boaventura observa que ainda prevalece a idéia de que o magistrado que se forma na Faculdade de Direito está formado para toda a vida, o que é um erro. A formação da faculdade é genérica e deve ser complementada com formações especializadas e interdisciplinares.”
Mas esta formação meramente técnica da magistratura proposta por Boaventura Sousa Santos não é suficiente. Sem humanismo e magistrado cidadão, nenhuma técnica será suficiente.
Em 1988, mesmo ano da promulgação da Constituição Federal, Luis Alberto Warat publicou seu Manifesto do Surrealismo Jurídico[4] e propôs, ao final de sua obra, algumas teses para nossa reflexão. Dentre outras, destacamos:
1. Um princípio do surrealismo, tardio, seria: pessimismo no saber erudito e paixão na prática existencial e política.
2. Devemos sempre desconfiar do conhecimento instituído e da razão meramente instrumental.
3. O saber tem que estar sempre servindo à autonomia e à autodeterminação do homem. Precisamos desqualificar o saber que não ajuda à lucidez emancipatória.
4. Não se podem suprimir as desigualdades materiais à custa de homogeneização dos indivíduos e das consciências. A liberdade nunca pode ser o preço do bem estar material. Entretanto, ninguém é livre se não tem asseguradas suas condições materiais de existência.
[...]
7. Sem utopias (sonhos) não existe transformação da realidade.
[...]
10. Todo processo de ensino deve visar à preservação de nossa capacidade de engajamento numa práxis transformador. Por isso, na base do ato pedagógico devemos encontrar o estímulo à criatividade, o entusiasmo pela vida, e uma trama de afetos.
11. A prática dos juristas unicamente será alterada na medida em que mudem as crenças matrizes que organizam a ordem simbólica desta prática. A pedagogia emancipatória do Direito passa pela reformulação do seu imaginário instituído.
12. O sentido do Direito é o de ser parte do sentido de uma prática social.
[...]
17. Lutar pelo amor e pela felicidade é mais importante do que possuir uma respeitável erudição, nisto radica a mais profunda subversão pedagógica. Um professor não pode esquecer de ensinar a lutar pela felicidade. Isto é uma condição mínima para gerar um mundo baseado em outras necessidades. Ninguém é feliz se não ama os outros. A necessidade de amor deve substituir as atuais necessidades de consumo. O surrealismo tardio levanta-se contra todas as tentativas de mistificação do amor e das emoções. Rejeita o misticismo, alheio aos problemas sociais.
[...]
18. Assim como vicemos numa sociedade onde tudo é transformado em mercadoria temos uma vida jurídica onde tudo é convertido em lei. Os sonhos do capitalismo viram sempre mercadorias.
[...]
28. O surrealismo tardio procura a negação dos valores de produtividade, competência e conformismo, revelando-se, assim, contra os elementos que impedem a procura de uma nova dimensão humana. Precisa-se de uma vulcânica mobilização existencial que tire o homem d apatia cotidiana. O surrealismo tardio prega pela procura de um mundo melhor e pela tomada de consciência em relação á cultura instituída que nos condiciona para que atuemos contra a possibilidade de nossa própria liberação.
[...]
30. O surrealismo tardio se levanta contra uma razão instrumental que domina as emoções.
31. O principal objetivo pedagógico do surrealismo tardio é a criação de estruturas que liberam a criatividade e a comunicação das pessoas. Não existe método pedagógico que possa ser sustentado se violenta esse objetivo.
Mais recentemente, discorrendo sobre “Educação, Direitos Humanos, Cidadania e Exclusão Social: fundamentos preliminares para uma tentativa de refundação” [5], Warat defende a “humanização” do Direito e a “cidadanização” do Juiz:
Em geral, poderia dizer que a hipótese interrogativa que move meu pensamento passa pela busca de duas definições que têm uma única resposta preliminar e provisória. Em que consiste humanizar o direito? E, em que termos pode situar-se a crise de identidade do sujeito de Direito? Intuo que a madeixa que contém a resposta pode começar a desenveredar-se dizendo que o direito se humaniza e a identidade jurídica volta a se solidificar, reconstruir em uma totalidade complexa seus fragmentos, apostando na realização de um processo de “cidadanização do jurídico”. Entendo por tal, os mecanismos que permitam realizar concreta e historicamente práticas moleculares de fluxos esquizofrênicos (Guatarri) que permitam aos excluídos construir o espaço político de sua identidade, de suas emoções e de seus afetos. E, por outro lado, que ajude a um judiciário perdido em sua identidade institucional a reencontrar-se, tornando suas práticas cidadãs, buscando um novo perfil institucional e pessoal, baseado na figura de um juiz cidadão. Em outras palavras, a humanização do Judiciário passando pela descoberta de uma nova identidade para a magistratura: a identidade do magistrado como cidadão, como homem sensível e comum, não mais como um semi-Deus de um real maravilhoso. Como se alcança isso? É mais uma das respostas que se buscará.
No mesmo sentido do nosso grande baile, Warat propõe também a “hominização” do judiciário e convida a magistratura a repensar sua condição e entender o Direito fora das margens do que resulta entendido, mais amorosa do que legalista.
Quando se fala em hominização do Judiciário, estamos falando de questões quase inéditas para o mundo jurídico, bastante resistente a pensar-se ou auto pensar-se com a dignidade e franqueza requerida. Uma instituição que tem horror de ser criticada. Desde a cegueira crítica que os magistrados instalaram em suas instituições, falar de humanização quer dizer algo simplório, permitir a um número maior de pessoas (os que, todavia, não tem acesso a à jurisdição), que a acessem. Essa é uma falsa postulação. Porque ter acesso à justiça dos excluídos é a melhor e maior forma de perpertuar a exclusão. A hominização do Judiciário passa por convidar os integrantes da magistratura a pensar-se, a produzir pensamentos arraigados sobre si mesmos, entender o Direito fora das margens do que hoje resulta entendido, pensar em uma justiça, como já disse, amorosa, mais que legalista. A justiça emocional (que não pode ser confundida com a valorativa).
VII – CONCLUSÃO
Em conclusão, podemos afirmar:
1. Em termos institucionais, a transição brasileira operou-se forma pacífica, sem traumas;
2. A constituinte brasileira reuniu-se na forma de congresso constituinte e foi convocada através de emenda constitucional à então constituição vigente;
3. A constituição promulgada tanto garantiu a transição pacífica quando estabeleceu metas e programas, além de instituir direitos individuais e sociais;
4. Com a judicialização de vários aspectos da vida e a normatização que se seguiu à Constituição, o Poder Judiciário tornou-se peça fundamental na realização da Constituição.
5. No grande baile social, igualitário e democrático que deveria se seguir à promulgação da Constituição, caberia ao Poder Judiciário disponibilizar o espaço e a estrutura para sua realização e a magistratura deveria promover o serviço de atendimento e ser os pares da grande dança social;
6. O Poder Judiciário, no entanto, depois de 20 (vinte) anos, não criou ainda este espaço e a magistratura recusa-se a prestar serviço e a bailar com o povo, apesar da existência de uns poucos sonhadores;
7. Por fim, somente a Revolução Democrática da Justiça e a Revolução Humanística dos Magistrados possibilitarão a realização deste baile que teima em não acontecer.
[1] Contribuição ao VI SEMINÁRIO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA – 20 anos da Constituição Federal de 1988: um balanço - Uneb – Campus I – Salvador – Ba. - Dep. de Ciências Humanas – Colegiado de Direito – 17 e 18 de outubro de 2008.
[2] O Pacote de Abril foi um conjunto de leis outorgado em 13 de abril de 1977, pelo então Presidente Ernesto Geisel que dentre outras medidas fechou temporariamente o Congresso Nacional. A imprensa chamou este conjunto de leis de Pacote de Abril. Este pacote constituía de uma emenda constitucional e de 6 decretos-leis que, dentre ouras medidas, alteravam as futuras eleições. Um terço dos senadores não mais seria eleito por voto direto, mas sim indicados pelo presidente da República, os chamados senadores biônicos. Esta medida visava na época garantir ao regime militar uma maior base de apoio no Congresso Nacional. O "pacote" também estabelecia a extensão do mandato presidencial de cinco para seis anos, a manutenção de eleições indiretas para governador e a diminuição da representação dos estados mais populosos no Congresso Nacional. Assim, metade das vagas em disputa para o Senado, que naquele ano de 1978 renovaria dois terços de seus integrantes, seria preenchida por votação indireta através de um colégio eleitoral reunido nas respectivas Assembléias Legislativas. Estes senadores foram apelidados de senadores biônicos aparentemente a uma alusão a uma série da televisão passada na época chamada “O Homem de Seis Milhões de Dólares”.
[3] Disponível em < http://www.amab.com.br/gerivaldoneiva/textos.php?fazer=det&cod=133 > acesso em 14.10.2008.
[4] WARAT, Luis Alberto. Manifesto do surrealismo jurídico. São Paulo: Editora Acadêmica, 1988.
[5] Disponível em < http://portal.mec.gov.br/sesu/arquivos/pdf/educacaodireitoshumanos.pdf > acesso em 14.10.2008
Juiz de Direito em Conceição do Coité - BA
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NEIVA, Gerivaldo Alves. A magistratura e a CF de 1988 - O baile que teima em não acontecer Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 out 2008, 10:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos /15247/a-magistratura-e-a-cf-de-1988-o-baile-que-teima-em-nao-acontecer. Acesso em: 29 dez 2024.
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